BORDAS RAREFEITAS DA LINGUAGEM ARTÍSTICA PERFORMANCE
SUAS POSSIBILIDADES EM MEIOS TECNOLÓGICOS

Maria Beatriz de Medeiros

"Adão e Eva deixam a eternidade e a felicidade do Paraíso para preferir o efêmero"
Bernard Teyssèdre, notas de aula, Sorbonne, 15 de novembro de 1984

Podemos situar o aparecimento da Arte da Performance como linguagem artística multidisciplinar, geralmente com eixo nas Artes visuais, porém ainda não identificada como tal, no Futurismo e no Dadaísmo. Sua atividade se estende por ações de Marcel Duchamp, John Cage, Grupo Fluxus, entre outros. Denominando-se Performance, Happening, Body-art ou Art Corporel, a encontramos intensa de 1960 à, cerca de, 1975: Allan Kaprow, Wolf Vostell, Michel Journiac, Dennis Oppenheim, Vito Acconci, Gina Pane, Chris Burden, Gilbert and George, Nitsch, Maccheroni. Nos anos 80 e 90 a Performance está sempre presente embora não como uma das linguagens artísticas mais utilizadas: Joseph Beuys, Daniel Buren, Ben d'Armagnac, Grupo General Idea, Tom Scherman, Ulay e Marina Abramovic,... Recentemente citaríamos Eduardo Kac, em novembro de 1997, no Rio de Janeiro, enxertando um chip em seu pé, Renato Cohen, o Grupo Kitchen de New York, Guillermo Gómez-Peña (desde os anos 80) e Roberto Sifuentes, Ulrike Rosenbach (desde os anos 70), Regina Frank, e o Grupo de Pesquisa CORPOS INFORMÁTICOS, por mim coordenado. A linguagem artística Performance, por envolver elementos estéticos novos (o corpo do artista como objeto da arte; a efemeridade da ação; a participação, não só intelectual e emocional, mas física do público; entre outros), modifica o conceito de Arte, e redimensiona outros, por exemplo, o teatro (Trisha Brown, Pina Bausch,...).

Hoje, com todas as linguagens artísticas confrontadas, não às novas tecnologias, mas às onipresentes tecnologias, falaremos sobre as possibilidades da Performance potencializadas por esta onipresença. Vejamos, primeiramente, de que formas tem sido compreendido o termo performance. Como vimos, rapidamente, a arte tornada ação efêmera, que denominamos Performance, nasceu como Happening (evento), alguns a chamaram Body-Art, outros Art Corporel, todos reivindicando para si a faísca inicial de uma nova linguagem artística. Allan Kaprow, em 1984, em Salzburg, me declarou que apenas Wolf Vostell e ele faziam Happenings, segundo a concepção dele de Happening, isto é, envolvendo participação ativa do público.

François Pluchart preferiu intitular seu livro L’art corporel e assim se coloca: "Se a expressão ‘arte corporal’ tem o mérito de manter a questão do corpo no interior do domínio da arte, a palavra ‘performance’ gerou os piores mal-entendidos".(1)

Arnaud Labelle-Rojoux intitulou seu livro "L’acte pour l’art" e escreveu, sem discriminação, sobre a história dos Happenings, da Art Corporel,... e termina afirmando: "qualquer forma que ela (a arte-ação) tome, é no entanto o fundo que é impossível negar: ela ‘esteve lá’. Melhor: ela está lá. Ela se chama ‘performance’, diferente, ela terá amanhã outro nome..." (2)

Não se trata de rotular uma linguagem artística, que talvez seja aquela que mais tenha querido ludibriar as classificações dos críticos e jornalistas, mas de como muito bem coloca Bert O. States, professor emérito do Departamento de Arte Dramática, Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, em seu texto "Performance as Metaphor", estamos interessados em saber o que acontece quando confrontamos o fenômeno da Performance como algo a ser definido. Ele afirma não estar interessado em dar o título de Performance à algumas atividades mas em "saber porque, e sob que condições, estamos confortáveis" denominando-as Performance. Esta inquietação também é nossa: "saber porque, e sob que condições, estamos confortáveis denominando" certas ações "performances" (3).

Estudos sobre a Performance e Etnocenologia

Estudos sobre a Performance representam, há cerca de 15 anos, um verdadeiro movimento nos Estados Unidos. A Performance é, aí, vista de forma ampla, porém estes Estudos estão sempre situados, nas Universidades, nos Departamentos de Teatro. Nossa reflexão refere-se à linguagem artística Performance com eixo nas artes visuais, porém vejamos como o Departamento de Estudos da Performance da Tisch School of Arts, New York compreende a Performance, analisando as disciplinas oferecidas. Este Departamento outorga diplomas de Master of Arts e Doctor in Philosophy. São disciplinas deste Departamento estudos sobre autores, atores, e, verdadeiros filósofos do Teatro: Shakeaspeare, Isadora Duncan, Antonin Artaud e Bertold Brecht, Merce Cunningham e Ivonne Rainer; estudos sobre os movimentos artísticos: Renascentista, Romantismo, Realismo e Naturalismo, Expressionismo, Modernismo, Avant-Garde, e Dança Moderna; as diferentes culturas, o popular e o folclore: Performance Asiática, Performance Européia e Americana, Cultura Popular, Cultura Negra, Folclore judeu e etnologia, Performance e etnografia; são, ainda, disciplinas deste: Estética do Quotidiano, o Sagrado no Quotidiano, Espaços da Performance, Tempo e Performance, Gênero e Performance, Autobiografia e Performance, Ritual e Performance, Corpo em Choque, Possessão, Arte Verbal e Performance; e, ainda, disciplinas que nos parecem estranhas: Produções Turísticas, e Comida e Performance. (Não foram aqui listadas todas as disciplinas; foram respeitados todos os títulos das disciplinas).

Em nossa compreensão da Performance, e em nosso empreendimento em tentar compreender esta linguagem artística em uma sociedade plena de tecnologias, certamente nos interessa a Estética do quotidiano (banhado em tecnologias), os espaços (telemáticos) da Performance e a relação tempo (tempo real-tempo virtual) e Performance; nos questionamos sobre o Corpo em Choque e pensamos a conjugação texto-ação.

Em 1995, em Paris, foi criado o Centre International d’Ethnocénologie(4). Este Centro nasce da vontade de "multiplicar os pontos de vista e os enriquecer". O termo "etnocenologia" está apresentado no Manifesto de criação deste centro, datado de 9 de fevereiro de 1995, como um "neologismo" que "se inspira de um uso grego que sugere a dimensão orgânica da atividade simbólica" (o grifo é nosso). O manifesto apresenta a definição de etnocenologia: "o estudo, nas diferentes culturas, das Práticas e dos Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados" onde "a palavra ‘espetacular’ viria do ‘performing’, em inglês...: 1) não se reduz ao visual; 2) se refere ao conjunto das modalidades perceptivas humanas; 3) sublinha o aspecto global das manifestações expressivas humanas incluindo as dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais".(5) À diferença da Etnocenologia não consideramos rituais místicos, encenações folclóricas como Performance, no sentido que investimos ao termo, como veremos no desenvolver do texto.

Com os Estudos da Performance e com a Etnocenologia constatamos a imensidão desta área de conhecimento, no que se refere mais diretamente ao Teatro. Voltaremos, depois, à Etnocenologia quando tratarmos da Tele-performance por estarmos nos referindo à Performances que, ainda que mediadas por tecnologias, referem-se, modificam, rompem , a "dimensão orgânica da atividade simbólica".

Performance como Metáfora

Diz Bert States que performance é claramente um destes termos que Raymond Williams chama "palavras-chave", ou palavras (como Realismo, Naturalismo, mimesis, estrutura) cujos significados estão "inextrincavelmente constrangidos pelos problemas que estão sendo usados para a discussão" (6).

As palavras evoluem a cada dia por um processo caótico, onde a base semântica, por recorrência, tem seus significados ramificados até alcançar territórios incomensuráveis. Nós citaremos: arte, linguagem, ciência, tecnologia, multimeios, multimídia, interatividade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, globalização, entre outras.

Bert States lembra que, para performance, em filosofia, diríamos problema-limite (sujeito, mundo), problema onde "o investigador se desloca para ser parte deste" (7). Esta colocação nos faz pensar, por um lado, em auto-análise, onde o investigador é o problema, e por outro lado, em Roland Barthes onde este afirma que estamos "sempre em estado de espetáculo"(8). Neste caso, somos todos performers? Estamos sempre performando? Assim como a auto-análise, esta colocação de Barthes está fadada ao impasse. Será, então, que a Performance também não pode ser realizada, analisada, tratada, por se tratar de um problema-limite? Existe uma diferença entre palavras-chaves, que certamente, evoluem como quer Bert States, e das quais faz parte o palavra performance, e problemas-limite, problemas onde o investigador é parte do problema. Durante a Performance, o artista está submerso em um problema-limite, porém, como conceptor e como avaliador, respectivamente, antes e depois da ação, o artista necessita emergir e sobrevoar o local da investigação, para poder prosseguir seu processo de criação artística.

Bert States lembra nosso hábito de usar palavras, principalmente palavras-chave, como metáforas esquecendo-nos que são metáforas, e levando-as a uma gradativa perda de denominador comum, uma "transitividade ilusória"(9).

Ainda segundo Bert States, a definição de performance é uma impossibilidade semântica. E não podemos definir um fenômeno como performance porque sua constituição não é a mesma em uma máquina, uma doença ou uma molécula de água. Performance seria um conceito com "vagas fronteiras", como afirma Wittgenstein, um conceito que é permeável à novos significados (10). Bert States afirma, ainda, que muitas palavras são potencialmente metáforas, e muitas delas expandem-se para virtualmente incluir tudo em uma rede semântica ou metonímica. Ainda que, como artistas plásticos praticantes da linguagem artística Performance tenhamos consciência das bordas rarefeitas do conceito desta linguagem, acreditamos ser possível, talvez não definir, mas permear, visitar, refletir sobre o âmago desta linguagem artística, que difere da performance de uma máquina, de uma doença ou molécula.

Pensamos aqui no uso do termo, feito por Jean-François Lyotard, em La Condition Pos-moderne. Vejamos como, apesar da utilização do termo performance para fins diferenciados, permanece em seu seio o conceito deste, não havendo uma expansão tão grande quanto à preconizada por Bert States.

Jean François Lyotard e J.-L. Austin

Jean François Lyotard afirma que "em teoria da linguagem, ‘performativo’, tomou, desde Austin, um sentido preciso. O veremos associado aos termos ‘performance’ e ‘performatividade’ (principalmente de um sistema) no sentido tornado corrente de eficiência medida em input/output. O ‘performativo’ de J.-L Austin realiza a performance optima" (11).

A tradução é nossa pois, infelizmente, na tradução brasileira "O Pós-moderno" (12), o tradutor afirma ter preferido "as palavras desempenho ou eficiência mensurável para performativité e performatif", o que à nosso ver modifica o texto de Lyotard, que utilizou o termo performance e se referiu ao sentido dado à este por Austin, a partir de 1962. Certamente, se quisesse, Lyotard teria feito uso de termos como accomplissement e résultat chiffré, sobretudo por ser intuito de Lyotard fazer uma análise crítica de apropriações inadequadas da teoria da linguagem aplicada à dinâmica das sociedades, das instituições, do poder, do sistema, enfim, da humanidade, e uma crítica ao sistema que se legitima pela performatividade, uma crítica ao determinismo, à filosofia "positivista da eficiência".

O termo performance utilizado por Lyotard faz referência à performance de uma máquina, à uma performance optima, redimensionada por metáfora ao "funcionamento" de uma sociedade(13).

Embora pareça termos dado passos em direções por demais amplas, esta pequena reflexão significa subsídios para evitar compreensões errôneas, sobretudo por estarmos querendo tratar das possibilidades da linguagem artística Performance em meios tecnológicos, logo em sistemas controláveis cujas performances devem, na maioria das vezes, ser optima. Disse "na maioria das vezes" por que em se tratando da realização de Performances artísticas empregando meios tecnológicos, muitas vezes, requer-se destes meios performances diferenciadas, objetivando-se o questionamento do conteúdo implícito na performance optima destes, consequentemente, o questionamento do emprego destes no sistema.

Tomemos, então, Austin, já que o próprio dos Filósofos da Linguagem Ordinária pode ser expressa pelo "slogan Meaning is use (‘o sentido é o emprego’)", e que este sentido "se aproxima mais do sentido da ação que daquela das matemáticas, e que os filósofos não discerniram" (14).

Austin identificou enunciados constatativos do tipo: está chovendo, e enunciados performativos que "têm esta propriedade que o sentido intrínsico deles não se deixa capturar independentemente de uma ação que eles permitem realizar" (15). Diríamos, então, que o sentido de uma Performance tem esta propriedade que seu sentido essencial não se deixa capturar independentemente de uma ação que ela permite realizar. O artista seria o enunciador, a obra-Performance seria o enunciado, cujo efeito sobre o referente coincide com sua enunciação (Lyotard), e o público seria o destinatário, no caso da Performance, com direito à resposta. Não estamos nos referindo à "eficiência medida em input/output" mas à comunicação, onde a eficacidade total do "sistema" diria respeito à interação artista-obra-público, tendo esta interação reconfigurado as partes (as interfaces): o artista, a obra e o público. Diremos, então, houve uma ótima Performance.

Richard Schechner e Peggy Phelan

Bert States apresenta, no referido texto, as colocações de diferentes estudiosos. Erving Goffmann (16), Victor Turner (17), sociólogos, que define, como Richard Schechner, como teóricos "outsiders", que pensam a performance social em seu nível mais extenso. Apresenta, ainda, Richard Schechner e Peggy Phelan, que classifica como "insiders" por estarem diretamente envolvidos com a performance artística. Trabalharemos, por enquanto, com estes dois últimos.

Da posição de Schechner (18) discordamos completamente pois este afirma que o processo ritual é Performance. E que esta jamais será uma primeira vez, mas repetição: ato repetido que porém permanece sempre atualmente performado. Evidentemente não podemos negar que a cada vez que um ator atua, repetidas vezes, dentro de um texto, contexto, ambiente e tempo pré-determinados por um diretor ou por uma equipe, ou que, quando um indivíduo participa de um ritual com marcações, textos, ambiente determinados, há anos, por desconhecidos ancestrais, ele, por vezes, entra em um estado no limite do transe, ou literalmente em transe, e realiza uma determinada performance. No entanto, não estaríamos tratando da linguagem artística Performance, da qual estaria excluída quase todo o teatro, exatamente por sua carga de repetição, de automatismo e não de criatividade, não de linguagem própria. Inegavelmente algumas abordagens da linguagem teatral atual se distinguem exatamente por terem incorporado, da Performance, a possibilidade do ator estar a cada vez vivenciando a repetição teatral com toda a sua emotividade, ou como quer Sartre, citado por Bert States, alguns atores se sobressaem por estarem "totalmente e publicamente devorados pelo imaginário" (19).

O que caracteriza a ação corporal, o que faz com que ela não tenha nada à ver com o happening e nenhuma forma teatral, fosse a mímica, é precisamente seu carater de gesto único e não reprodutível. (20) François Pluchart.

O gesto único, e não reprodutível, não é maquinal: inconsciente, automático, reflexo, mecânico. Notemos a distinção, ainda que tênue, entre o "ser devorado pelo imaginário" e o gesto inconsciente.

Lembremos, para maior atenção ao empregarmos o termo ritual, o que disse Michel Foucault. Este referia-se aos "rituais da palavra".

A forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo que se pode agrupar sob o nome de ritual; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, que devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte, políticos não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos(21). Michel Foucault. (O grifo é nosso)

"Performance é somente vida no presente. Performance não pode ser salva, gravada ou documentada. Torna-se ela mesma através do desaparecimento" (22), produzindo uma interação entre o self e o espectador. Acreditaríamos termos chegado à linguagem artística Performance pois P. Phelan refere-se à noção de presença e à interação do objeto de arte com o espectador, no entanto refere-se à fotografias, pinturas, filmes, peças teatrais, protestos políticos. Refere-se às, certamente sensacionais, fotografias de Mappelhorpe e Cindy Sherman. As fotografias destes dois artistas revelam o corpo humano real, com ou sem máscaras, resgate do homem-corpo, do homem-matéria, do self, do indivíduo. Porém, a fotografia nunca soube nem representar o real tal qual nós o percebemos, tanto pelas distorções das lentes, quanto por seu suporte bidimensional, e, sobretudo, por ser estática.

A exposição "Sensation", Royal Academy of Arts, Londres, 1997, apresentando a coleção de Charles Saatchi, choca por ter este mesmo caracter de mundo cru, "erotismo, violência, vulgaridade e humor", "abandono de praticamente toda experiência abstrata", e "uma forte preocupação com a natureza corporal"(23)

Laymert Garcia dos Santos (24) toma Gilles Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon, onde este apresenta a "lógica dos sentidos", que "dirige-se ao cérebro, age por intermédio do cérebro", e a "lógica da sensação", "que age imediatamente sobre o sistema nervoso que é carne".

As fotografias de Mappelhorpe e Cindy Sherman seriam da ordem da "lógica da sensação" por agirem sobre a carne, por pulsarem "na intersecção entre o mundo da Natureza e o mundo sufocante da Cultura Contemporânea".(25) Porém fotografias não podem ser jamais consideradas Performances, por mais fortes e envolventes que sejam, serão sempre registros, recortes de ações retiradas de seus contextos, arrancadas de seus sons e cheiros, serão registros, fragmentos de instantes desterritorializados. O tempo, elemento estético imprescindível da Performance, foi desintegrado.

Phelan refere-se à "estética da presença", porém, na fotografia, na pintura ou escultura, esta presença refere-se apenas ao confronto: obra de arte-público; e este público, em geral, está passivo, como vocês, utilizando-se apenas do olhar para intermediação com esta obra. Se a participação do espectador for considerada Performance acontecendo na consciência, no imaginário deste, toda obra de arte, toda obra arquitetônica e toda a música pré-gravada e vivenciada, por vezes séculos mais tarde, toda literatura, seria arte da performance. Toda "obra aberta", como quer Umberto Eco seria Performance (26).

A reflexão é interessante pois expande o campo da Performance e valoriza a participação intelectual do espectador como parte da obra. Sem querer delimitar os bordas rarefeitas da linguagem artística Performance, assim proceder implicaria na completa dilatação e consequente desaparecimento, da mesma. Logo, estamos de acordo com Bert States, que embora trilhando outras trilhas, chega ao impasse e afirma que deveríamos nos perguntar "o que não é performance?". (27)

Qualquer obra de arte precisa do espectador para realizar-se como obra, e fotografias realizam-se como obras de arte desta forma, exatamente como pinturas, objetos. Na Performance a presença do espectador é requerida, não como espectador a posteriori, mas como parte da obra, enquanto elemento estético da obra de arte. Podemos referirmo-nos aqui à instalações onde todo o ambiente da galeria é tornado elemento da obra, ou em obras EX-SITU, toda grama, chuva, nuvem passa a ser elemento da obra, e elemento estético pois órgão vital da mesma. Assim na performance a presença do outro, dos outros é elemento estético, órgão vital.

RoseLee Goldberg

RoseLee Goldberg trata específicamente da performance como linguagem artística nascida das Artes Plásticas, ou melhor nascida de encontros de artistas: poetas, músicos, artistas plásticos, nem sempre com a presença expressiva de atores. Vejamos a abrangência das colocações de RoseLee Goldberg. Para ela a Performance poderia ser:

 

Apesar de tocar pontos essenciais da Performance, como a efemeridade, que traz o tempo como elemento estético, a participação do público, o trabalho em grupo, RoseLee Goldberg não os aprofunda. No final, deste trecho do livro, ela afirma "cada artista faz a sua definição". Estes aspectos, por um lado, não esgotam o campo da Performance, por outro, são por demais amplos e não discutem o cerne da questão. Não queremos chegar à definir Performance, mas percorrer as bordas rarefeitas desta linguagem artística para podermos analisar as possibilidades de existência desta mediada por tecnologias vídeográficas, numéricas e transmitidas à distância, ao vivo, e permitindo interatividade. Hoje a Performance ressurge, via rede de comunicações, como presença virtual, com seu tempo expandido e seu espaço tornado total.

Performance e tecnologias

Só o toque pode tentar sentir uma ínfima parte do outro, sua capa. Só o corpo desnudo revela esta ínfima parte e desejo de encontro (sic). O odor só se revela na presença ou, aos poucos esvanecido sobre outros suportes. O som é promíscuo: se deixa capturar e reproduzir. O gosto e o corpo permanecem inseparáveis. Nestes sentidos só a performance traz à arte elementos do desejo carnal: amor e ódio; prazer estético (aesthesis). Se realizada ao vivo permite interação de seres desejantes, isto é, o que consideramos característica maior da Performance. No entanto, a vídeo-performance carrega imagens e sons e pode expandir desejos.

As técnicas... Elas são inicialmente próteses de órgãos ou de sistemas fisiológicos humanos tendo por função receber dados e agir sobre o contexto. Elas obedecem à um princípio, o de otimização das performances: aumento de output (informações ou modificações obtidas) redução de input (energia dispensada) para os obter. A performatividade de um enunciado,... , cresce na proporção das informações das quais dispomos sobre o referente. (29) Jean-François Lyotard

Na Performance artística poderíamos falar em aumento da comunicação artista-obra-público, aumento de interação com menor energia, espaço e tempo dispensados para obtê-la. A participação de monitores, vídeos, câmeras, sensores táteis ou sonoros, redes de comunicação e outros instrumentos tecnológicos podem em uma Performance artística serem exigidos no sentido de uma otimização, mas contrariamente, o artista pode tirar proveito de uma baixa performatividade destes, e inclusive de uma participação absolutamente outra (normalmente considerada erro). Em se tratando de obras de arte, Performance ou outra linguagem artística, uma certa quantidade de ruído e de incompletude de informações é desejável para aumentar o out-put.

A particularidade da ação corporal é que temas e técnicas aí se superpõem geralmente através de uma prática multimídia na qual os objetos tem grande parte. É, então, um pouco perigoso definir temas, já que o sujeito exclusivo da arte corporal é o corpo tal como a sociedade o vive, o oculta, o oprime ou o rejeita. O sexo, o prazer, o gozo, o sofrimento, a morte, a fantasia (travestissement), os determinismos coletivos e todas as noções que permitem tomar a questão central do corpo socializado têm aí, portanto um relevo particular (30). François Pluchart

A arte corporal se interessa à materialidade do corpo. O Corpo que temos, hoje, adquire uma nova consciência desta materialidade, da sua materialidade: corpo estendido por tecnologias. Esta extensão é apenas metáfora, mas lembremos que esta extensão vem interferindo na consciência humana.

Nossa contemporaneidade está toda plena de tecnologias, e estas tecnologias envolvem diferentes, senão todas, as disciplinas do conhecimento humano (estética, antropologia, sociologia, comunicação, linguagem, ecologia, lógica, matemática...) A Arte, necessariamente, é reflexão e reflexo da nossa realidade, uma realidade "grávida de um avião" (canta Marina Lima), grávida de tecnologias.

Do significado de uma Performance faz parte o entrelaçar artista e público onde estes se confundem, em um só movimento. Confronto direto. A que confrontos diretos somos sensíveis hoje? Que corpo a sociedade vive, oculta, oprime, rejeita? O sexo, as noções "que envolvem o corpo socializado" são, muitas vezes, conscientizados através dos diferentes suportes de captação e difusão da imagem reproduzida (fotografia, cinema, vídeo, Internet,...)

O significado de uma Performance depende de um reconhecimento de si no outro. Quais as possibilidades de envolvimento com imagens, e sons, eletronicamente produzidos e reproduzidos, à posteriori ou ao vivo? Todas as possibilidades. Filmes eróticos excitam, o números de pessoas que visitam as páginas eróticas da WEB é enorme comparado às páginas de assuntos como arte, economia, ecologia ou outro.

Citei a dimensão orgânica da atividade simbólica (Etnocenologia). Costumo referir-me à ecologia simbólica, na qual cada nova técnica, fundando uma nova compreensão do corpo de cada indivíduo, de seu ser, do outro e do mundo, reorganiza o eikos, o habitat dos símbolos e suas interrelações, é a dimensão orgânica da atividade simbólica: órgãos e tecidos simbólicos vivos.

O corpo resiste a todo tratamento: vídeo-performance, tele-vídeo-performance e a completa entrega à intensidades pulsionais. O artista, primeiro conceptor, a obra de arte em geração via mídia, o espectador tornado co-autor e sua resposta-obra de arte em geração via mídia, o artista tornado co-autor: fluxo, ser cru no improviso da resposta imediata, trabalho em grupo.

Porém concluamos com Pluchart: "A arte corporal não é uma avant-garde. É uma ferida permanente no buraco do pensamento binário". (31) A arte corporal, a Performance, não é mais Vanguarda, no entanto mescladas de tecnologias ainda tem muito à experimentar. "Uma ferida... no buraco do pensamento binário", não inviabiliza uma performance tecnológica pois, por ser questionamento, expõe o outro da tecnologia. Questiona a performance da máquina enquanto sistema controlável, e tanto mais performático quanto mais eficaz.

Nosso quotidiano banhado por tecnologias gera a compreensão que temos de nossos horizontes. Os espaços estão preenchidos por imagens eletrônicas e lugares virtuais. São as dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais (Manifesto da Etnocenologia) que estão sendo se reconfigurando. É o conceito mesmo de di-menção (sic) que está, aqui, sendo questionado. O corpo mediado, transpassado por tecnologias não está (ainda) ritualizado, não é (ainda) folclore, mas inédito, ou, pelo menos, as cartas não estão marcadas. De certa forma, mediada por tecnologias, há expansão do teor inicialmente dado, por artistas que a praticaram, ao termo Performance , mas permanece, no âmago, da prática artística, o questionamento do conceito de arte, a negação do mercado, as diversas provocações junto aos espectadores. Comunicação, e não informação, e neste sentido, a Performance, tomando para si meios tecnológicos, questiona-os cor-rompendo (sic) a dilatada sociedade da informação. O significado do termo Performance, linguagem artística desliza e sofre uma profunda intervenção cirurgica: "o lugar das novas tecnologias é o corpo humano", afirma Paul Virilio.

(1) François Pluchart, L’art corporel, Paris, Images 2, col. Mise au point sur l’art actuel, 1983, p. 43. Todos os livros e artigos citados com seus títulos em francês, ou inglês, foram traduzidos por nós-mesmos.

(2) Arnaud Labelle-Rojoux, L’acte pour l’art, Paris, Les Éditeurs Evidant, 1988, p.320.

(3) Bert States, "Performance as Metaphor",publicado na revista Theatre Journal, março 1996, p. 1 a 26. Este texto nos foi gentilmente cedido por Prof. Dr. João Gabriel L. C. Teixeira, coordenador do Grupo de Pesquisa TRANSE, Brasília.

(4) O termo "etnocenologia" está, ainda, assim definido no Manifesto: "Este neologismo se inspira de um uso grego que sugere a dimensão orgânica da atividade simbólica. Na origem, skené significa uma construção provisória, uma tenda, uma choupana, uma barraca. Em seguida, a palavra ganhou, por vezes, o sentido de templo e da cena teatral. A skené era o local coberto, invisível aos olhos do espectador, onde os atores vestiam suas máscaras. Os sentidos derivados são numerosos. Partindo da idéia de abrigo protegido e de abrigo temporário, skené significou as refeições feitas sob a tenda, um banquete. A metáfora gerada pelo substantivo feminino resultou na palavra masculina skénos: o corpo humano, enquanto alma que aí habita temporariamenete. De certa forma, o "tabernáculo da alma", o invólucro da Psuchée (Psiqué). Neste sentido aparece junto aos pré-socráticos. Demócrito e Hipócrates a ele recorrem (Anatomia 1). A raiz gerou, igualmente, a palavra skénoma que significa, também, o corpo humano. Skénomata: mímicos, malabaristas e acrobatas, mulheres e homens, produziam-se em barracas de feiras no momento das festas (Xénophon, Hélleniques VII, 4, 32). Traduzido por nós-mesmos.

(5) Em português, admitindo a existência da palavra performáticos poderíamos redefinir a Etnocenologia como Práticas e Comportamentos Humanos Performáticos Organizados. Ao que nos perguntaríamos que práticas e comportamentos animais são conscientemente organizados, ou ainda, que práticas e comportamentos humanos performáticos, logo artísticos, não são de alguma forma organizados. Consequentemente redefiniríamos a etnocenologia como Práticas e Comportamentos Performáticos, simplesmente, lembrando que, como veremos, diferentemente da Etnocenologia, não consideramos rituais místicos, encenações folclóricas como Performance artística.

(6) Williams, Raymond, Keywords: aVocabulary of Culture and Society, New York, Oxford, 1976, p. 13, citado em op. cit. States, Bert O., p. 1.

(7) Bert States, op. cit., p. 2.

(8) "O corpo está sempre em estado de espetáculo diante do outro ou mesmo diante si-mesmo". Roland Barthes, artigo: "Encore le corps", in revista Critique, tomo XXXVIII: Roland Barthes, no 423/424, ag./set. 1982, pp. 645 a 654, p. 653.

(9) Eco, Umberto, "Ur-Fascism", New York Review of Books, 42, junho 22, 1995, p. 14, citado em Bert O. States, op. cit. p. 3.

(10) Wittgenstein, Ludwig, Philosophical Investigations, New York, Macmillan, 1968, p.34. citado em Bert O. States, op. cit., p. 3.

(11) Jean-François Lyotard, La condition Pos-moderne, Paris, Les éditions de Minuit, 1979, p. 21, nota 30.

(12) Jean-François Lyotard, O Pós-Moderno, trad. Ricardo Correia Barbosa, Rio de Janeiro, José Olympio, 1993.

(13) A utilização do termo funcionamento, aqui, foi proposital para exacerbar a problemática levantada por Lyotard: uma sociedade não pode ser pensada em termos de sistema controlável cujas performances poderiam ser melhoradas. Evidentemente esta frase não resume o denso e maravilhoso livro de Lyotard, que recomendo vivamente, no original em francês.

(14) Ducrot, Oswald e Todorov, Tzvetan, Dictionnaire encyclopédique des sciences du Langage, Paris, éditions du Seuil, 1972, apresenta Austin como filósofo inglês, especialista da "linguagem ordinária", assim como Wittgenstein, p. 90. "O ponto de partida da pesquisa deles (os filósofos da escola de Oxford) é a descoberta, por J.-L. Austin, da oposição entre enunciados performativos (performatifs) e constativos (constatifs). Uma expressão é chamada constativa se ela tende somente à descrever um evento. Ela é chamada performativa se: 1) ela descreve uma certa ação de seu locutor e, se 2) sua enunciação leva à finalizar esta ação; diríamos então que uma frase começando por "eu te prometo que" é performativa, pois a utilizando, realizamos o ato de prometer: não somente dissemos prometer, mas, fazendo-o, prometemos. ... Os performativos têm então esta propriedade que o sentido intrínsico deles não se deixa capturar independentemente de uma ação que eles permitem realizar.", p.427 e 428. (traduzido por nós-mesmos.)

Para Lyotard, em uma comunicação, um enunciado performático é aquele cujo efeito sobre o referente coincide com sua enunciação. E tem efeito imediato tanto sobre o referente quanto sobre o destinatário. No exemplo, de Lyotard, o Reitor seria o enunciador; a universidade, o referente; e o destinatário, o corpo professoral. Sugerimos que o artista seja o enunciador; a obra, o referente, e o destinatário, o público.

(15) Ducrot, Oswald e Todorov, Tzvetan, op. cit., p.126.

(16) Erving Goffmann, se interessava pela "estrutura da experiência individual em todos os momentos da vida social" (Goffmann, Frame Analysis: Na essay on the Organization of Expirience, Boston, Northeastrn Univ. Press, 1986, p. 13.), e utilizaria, segundo Bert States, a mais conhecida expansão metafórica do termo Performance, onde esta seria comportamento social, e "toda atividade de um participante dado em uma ocasião dada que serve à influenciar de alguma forma outros participantes" (Gofmann, The Presentation of Self in Everyday Life, New York, Doubleday, 1959, p. 15). Ambos citados por Bert States, op. cit., p. 5.

(17) Para Turner conflitos sociais são estruturados como dramas (Turner, "From Human Seriousness of Play", New York, Performing Arts Journal Publications, 1982, p. 68 à 69.) Bert O. States contesta afirmando que os dramas são construídos como conflitos sociais; são, algumas vezes, baseados nas formas conflituais da experiência humana.

(18) Richard Schechner, By Means of Performance Intercultural Studies of Theater and Ritual, Cambridge University, 1990; e Between Theater and Anthropology, Philadelphia, Pennsylnania Univ. Press, 1985. Ambos citados por Bert States, op. cit., p. 6.

(19) Jean-Paul Sartre, "Sartre on Theater", trans. Frank Jellinek, NY, Pantheon, 1976, p. 162, citado por Bert O. States.

(20) François Pluchart, op. cit., p. p. 38 e 39.

(21) Michel Foucault, A Ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, São Paulo, ed. Loyola, 1996.

(22) Peggy Phelan, Unmarked: the Politics of Preformance, Londres-New York, Routledge, 1993, citado por Bert O. States, op. cit., p. 9.

(23) Felipe Fortuna, "Individualismo Sensacional", in Folha de São Paulo, Caderno "Mais!", 23 de novembro de 1997, p. 6.

(24) Laymert Garcia dos Santos, "Sensação da contemplação", in Folha de São Paulo, Caderno "Mais!", 23 de novembro de 1997, p. 6.

(25) Laymert Garcia dos Santos, ibidem.

(26) Umberto Eco, L’oeuvre ouverte, trad. C. Roux de Bézieux, Paris, Seuil, 1965.

(27) Bert O. States, op. cit., p. 8.

Observemos: um texto, uma pintura, não seriam performance por não serem atuais, por não serem presença física do performer, afirma Bert O. States. Porém, complementa ele, "não são performances porque são construídos em meios não humanos". Usando a estratégia do próprio Bert O. States poderíamos afirmar que metaforicamente um texto, uma pintura, uma instalação poderiam ser projetos para performances, intelectuais ou até mesmo físicas, performances do leitor. Gostaríamos de perguntar, à Bert O. States, o que seriam meios humanos. Acreditamos que meio humano seria apenas o corpo nu. Se um texto, uma pintura são meios não humanos, roupas, adereços, músicas, luzes, também poderiam ser assim considerados. Onde se estabeleceriam os limites dos meios humanos em um espetáculo de Laurie Anderson? E na mais simples performance onde o artista está nu com uma pintura corporal?

(28) RoseLee Goldberg, Performance Art. From Futurism to the present., Singapura, Thames and Hudson, 1995, p.96

(29) Jean-François Lyotard, op. cit., p.110.

(30) François Pluchart, op. cit., p. 46

(31) François Pluchart, op. cit., p. 4.