Secreções e Contaminações. 508 Sul-Brasília 1996


Alice Stefânia Curi

Vanessa Gelli Rocha

Maria Beatriz de Medeiros


O espetáculo Secreções e contaminações, realizado na sala Multiusos, Espaço Cultural da 508 Sul, em 29 de novembro de 1996, representou um espelho do percurso do Grupo nesse ano.


Renato Cohen (2002), no seu livro Performance como linguagem, caracteriza a performance como uma “criação de um tempo-espaço de experimentação”, ou seja, a criação de um momento atual preenchido com a vivência de uma experiência verdadeira, realmente transformadora, posto que acontece aqui e agora dentro do performer, sendo um acontecimento ao vivo, inédito. O público, evidentemente, capta essa verdade e, de certa forma, co-experimenta.


A presença da performance no espetáculo exige a participação do público. Ele manipula a energia que mobiliza os acontecimentos. Inconsciente do seu papel de atuante, muitas vezes o público não se sente suficientemente motivado a participar, e a performance, por vezes, não chega a atingir seu potencial de ‘acontecimento vivo’.


Corpos Informáticos lida com o que Schechner chama de multiplex code, que provoca no espectador uma recepção mais cognitivo-sensória do que racional. Criamos, em Secreções e contaminações, “um tempo-espaço de experimentação”, jogando com os diversos conteúdos trabalhados pelo grupo, editando e buscando uma naturalidade desses conteúdos no decorrer do espetáculo. Havia luzes provenientes de projeções e televisores, secreções tecnológicas; havia a reflexão destas em espelhos, portas de vidro e nas telas dos televisores. Havia luvas cirúrgicas e nebulizadores, denotando a possibilidade de contaminações com a tecnologia. Isso interagindo de forma quase autônoma com performances individuais, em grupo e com o público.


A visão do público era a de uma sala escura e ampla, com uma televisão ligada só em ‘AV’, tornando o ambiente azulado. Ao fundo, portas de vidro refletiam as luzes. Em frente, uma escadaria/arquibancada, onde todos os degraus estavam cobertos com luvas cirúrgicas e, em um deles, três nebulizadores, onde três performers, portando luvas, se nebulizavam. Os espectadores se dirigiram para a escadaria, sentaram e, espontaneamente, vestiram as luvas. Os quase 15 minutos que se seguiram foram intensos. A sala azulada, o barulho dos nebulizadores e a ‘voz’ da inquietude do público diante do que não ocorria. Televisores suspensos. Os outros membros do grupo entraram, passaram pela escada, pegaram um par de luvas, vestiram e se dirigiram para seus ‘postos’. Uns ligaram os refletores que também emitiam luz azul, outros ligaram os televisores que passavam vídeos, e outros performavam, culminando num conjunto visual dinâmico e tenso. Além do pequeno televisor no chão em ‘AV’, era possível ver agora todo o ambiente: cinco balanços de tamanho e altura diferentes carregando, cada um, um televisor e um vídeo. Três desses balanços permitiam também a presença de um performer.


Eu, grávida de 6 meses, passei pelo mesmo ritual de todos: vesti as luvas, dirigi-me para os nebulizadores e, além da boca e nariz, nebulizei também a barriga. Depois me deitei em frente ao televisor central, permitindo que a luz azul iluminasse toda a minha barriga. Realizava ainda uma intensa respiração abdominal. Esse movimento era visto através do reflexo do vidro. Alguns integrantes do grupo caminhavam pelo espaço e movimentavam os balanços criando um clima de tensão diante da possibilidade de colisão ou mesmo de queda dos mesmos, que, por sua vez, tomavam alturas bastante perigosas. Senti medo inúmeras vezes. Em lugar da mimesis do teatro, tivemos o aqui e agora. O improviso, em ações, gera a cumplicidade do público (Vanessa Gelli Rocha).


Para ver todas as nuances do espetáculo, era necessário um deslocamento. Dependendo do ângulo de visão, a realidade se transformava, reflexões. Propositalmente, deixamos dois televisores de frente para as portas de vidro. O público invadiu o ‘palco’ tornando-se atuante. Interagia, deslocando-se pelo espaço em busca de mais visão e emoção. Os balanços balançavam; os performers realizavam suas performances e os outros integrantes caminhavam pelo espaço com lanternas iluminando o público, fechando todos num grande jogo, uma espécie de celebração pós-moderna.


A performance de Milton Marques desenrolou-se sobre um balanço de dois por um metro, sobre o qual estavam um banco e um televisor de 29 polegadas, situado a meio metro do chão, e consistiu em ação em tempo real e vídeo. Na ação, o performer sentado no banco, ao lado da televisão, colocava copos sobre o aparelho. No monitor, eram exibidas imagens de copos vazios sendo preenchidos por água, quando cheios caíam. Com o movimento cada vez maior do balanço, os copos postos sobre o televisor também começaram a cair. Quando caiu o primeiro copo, o susto foi inevitável devido a situação de inquietude e insegurança causada pelos diversos televisores suspensos e em movimento. Mecanicamente, Milton repetiu a ação. Alice assim se exprimiu: “A fatalidade invariavelmente destruindo a ordem e promovendo o caos.”


A performance Texto, atuada por Alice e elaborada com a colaboração de todos os membros do grupo, realizou uma releitura de um texto de Heiner Muller (1993, p. 18), que tocava em pontos que questionamos. Alguns termos foram violados, transformados, suprimidos, somados para remeter a uma realidade mais próxima da temática/estética do espetáculo. O sentido/ritmo original do texto foi desconstruído a partir do deslocamento dos sinais de pontuação. A seguir transcrevo o original:


Talvez a denominação não fizesse mais que representar uma floresta e todos os outros sinais tornaram-se, há muito, aleatórios e substituíveis; também o animal que, para matá-lo, ele percorria esta realidade provisoriamente denominada floresta, o monstro a ser morto, que havia transformado o tempo em um excremento no espaço, era apenas a nomeação de algo não mais conhecível, um nome tirado de um livro velho. Somente ele permaneceu idêntico a si mesmo.


Nossa releitura:


Talvez denominação não / Mais, mais representar uma imagem e outros / Sinais tornaram-se a / Aleatórios e substituíveis realidade provisória /Urbana corpo /Urbana corpo / JÁ! / Morto havia transformado tempo excremento no espaço era / Nomeação de algo não / Conhecível nome tirado do velho / Vídeo anônimo é / a si idêntico / mesmo, mesmo, mesmo.



Esta performance acontecia sobre um balanço, situado a 10 cm do chão. Acima da cabeça de Alice, que se posicionava em pé, um outro balanço sustentava uma televisão que transmitia imagens de diferentes momentos da pesquisa. Em frente, um espelho da largura da sala permitia a Alice enxergar o todo do espetáculo. As frases foram ditas secamente. Não houve intenção ou envolvimento. O posicionamento da performer, com relação ao conteúdo do texto, deu-se tão-somente na sua reestruturação rítmica e formal. Dessa forma, não houve interferência ou direcionamento do envolvimento/compreensão do público. O único instante em que Alice se permitiu uma sensação, um sentimento, foi um grito, uma súplica:   Já! E, assim, sugeria que o que quer que fosse feito das palavras e sons ouvidos e das múltiplas imagens que invadiam o olhar, que fosse feito naquele instante. O grito era intenso e contrastante com a linearidade com que a voz percorria o espaço até então. O corpo acompanhou a explosão sonora em espasmos e contorções. A violência desse momento de alguma forma trouxe todos os presentes a uma presença maior e foi forçado um movimento diferenciado na televisão superior que batia contra as cordas do balanço inferior gerando tensão.


Nesse espetáculo concretizou-se plenamente uma das mais arraigadas e antigas propostas do Grupo: a interdisciplinaridade. Talvez, por isso mesmo, o espetáculo tenha se denominado Secreções e contaminações, com o subtítulo Espetáculo intersemiótico. Neste, todos os membros do grupo, tanto os do curso de Artes Cênicas quanto os do curso de Artes Plásticas ou de Desenho Industrial, participaram como performers, camera-man, fotógrafos...


Milton Marques (artes plásticas), Katiana Donna e Ramón Fonseca (desenho industrial) realizaram performances, testemunhando, assim, terem obtido uma formação mais abrangente do que aquela ministrada pelos seus respectivos cursos. Cabe lembrar, ainda, o enriquecimento, para a pesquisa, da participação de pesquisadores da área de artes cênicas, atuando na área de vídeo, completando o intuito e a metodologia do grupo: cada qual, dentro de sua linguagem específica de investigação, produzindo nesta e em todas as outras linhas de pesquisa desenvolvidas: intersemiosis.


Cabe ressaltar a realização plena de outra proposta dentro da linha de pesquisa, ‘no limiar do homem e da máquina’. Com sete televisores em cena, sendo cinco em movimento sobre balanços, em diferentes alturas, foi possível tornar a máquina ‘ator’. Os televisores foram nebulizados. Quando foi passado o vídeo Máscara I, eles diziam o texto do espetáculo; quando foi passado o vídeo Bocaliteradas, dialogavam.


Observação: Este texto foi escrito entre 1996 e 1997 e, agora em 2005, não quis muito retocá-lo. Hoje falaríamos em imersão. Os espetáculos do Grupo sempre desejaram e realizaram colocar o espectador para dentro da tela da televisão, dentro do espaço tridimensional da tela do computador.